quinta-feira, 28 de maio de 2009

Segredos e mentiras


Por causa de uma ida ao cabeleireiro eu me lembrei do dia em que eu comecei a perder os cabelos, por causa da quimio. O medico tinha dito que isso poderia ou não acontecer, porque as fórmulas não são todas iguais, e nem a reação de cada paciente. O tratamento estava bem no começo e eu ainda aguentava fazer minha caminhada habitual, bem cedinho, pela praia. Quando voltei, entrei no banho pra depois tomar o café. Lembro que eu estava satisfeita por conseguir manter a rotina de exercícios (me sentindo saudável!), ouvindo música no rádio, como tinha o costume de fazer a não sei quantos anos. Percebi que o box estava cheio, como uma piscininha; olhei o ralo e encontrei um bololô de cabelos entupindo o escoamento. Instintivamente coloquei as mãos na cabeça, como se eu pudesse evitar a queda; cheguei pro lado, fora do chuveiro e fiquei parada olhando o ralo... não sei quanto tempo se passou; sentei no chão do box e chorei embaixo d'água até cansar...
Eu não chorei por causa dos cabelos ou por causa da aparência. Eu chorei porque naquele momento eu tive o primeiro efeito adverso do tratamento e a constatação de que aquilo estava mesmo acontecendo. Não há nada mais representativo de alguém com cancer, do que a falta de cabelos.
E foi nesse mesmo dia que eu conversei com meu filho, na época com 6 anos. Mostrei o ralo cheio, falei que estava doente e que o remédio fazia o cabelo cair, que talvez eu ficasse totalmente careca. Falei que estava lhe contando porque tinha sido um susto tão grande pra mim, que queria que ele estivesse avisado; eu não sabia como ou quando ia ser (ficar careca) - talvez no próximo banho ou quando acordasse no dia seguinte.
A maioria das pessoas estranhou que eu falasse com ele tão abertamente; estava claro pra mim que o principal objetivo era não esconder ou mentir, mas também queria dar a ele a oportunidade de lidar com seus sentimentos e com a adversidade que a vida traz a todos nós. Eu não sabia se ia morrer ou sobreviver... como poderia olhar em seus olhos e não expressar nada? Como poderia subestimá-lo, achá-lo incapaz de participar dos acontecimentos? As informações eram filtradas, passadas de acordo com sua curiosidade e maturidade. Pedi a uma graaaande amiga, a melhor terapeuta infantil que eu conheço, que o acompanhasse profissionalmente. Sei que ela é parte importantíssima nesse processo com ele.
Hoje fico feliz e não me arrependo de ter agido assim. Aos 10 anos, ele tem noção da gravidade do cancer e, às vezes, ainda faz perguntas, mas o principal foi termos estabelecido, para sempre, um canal de comunicação franco - sem segredos e mentiras.
Estes fatos fizeram parte da construção da identidade dele, como alguém que pode compartilhar bons e maus momentos; que participou, a partir da sua possibilidade, da rede de sustenção de alguém.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Siga!


Este video fala por si só e representa muito bem a determinação necessária frente ao cancer e ao tratamento.
Meu sentimento está nele.

http://www.youtube.com/watch?v=xk-xI_nY2Co

terça-feira, 26 de maio de 2009

O outro lado da moeda



Um dia, me avisaram que os portadores de cancer tinham a 'vantagem' de isenção de impostos e outros 'benefícios'. Como assim 'vantagem'? É possível se obter 'benefício' por estar doente? É de dar arrepios. As tais vantagens são pequenas compensações financeiras que o cidadão portador de mal crônico, incapacitante, adquire frente a moléstia.
Eu implico com a maneira como as palavras são usadas porque acredito que a realidade é construída por nós, a partir do enfoque que é dado aos acontecimentos. Acreditar que o cancer traz beneficios pode ser bastante arriscado quando o objetivo é se livrar dele.
Isso me faz pensar na representação que o cancer (e estar doente) tem para cada paciente, e sobre como ele se comporta a partir disso. Recomendo com veemência ter ajuda de um terapeuta, alguém que esteja qualificado a ouvir os sentimentos tão intensos que inundam o peito. É importante poder falar sobre o medo, sobre a morte, sobre rejeição ou exclusão (às vezes se confundem) sobre os planos, sobre a vida que ainda tem pela frente, não importa quanto tempo dure. Falar sem pudor, poder refletir sobre sua condição, externar preocupações, ter suas apreensões acolhidas.
Os familiares não são as pessoas mais indicadas porque eles também estão com medo, não sabem como agir ou o que dizer; repetem discursos de otimismo e sobre a necessidade de ter fé; eles também precisam de ajuda. E não adianta falar em dinheiro, porque existem muitos serviços acessíveis, inclusive gratuitos, destinados a isso.
Infelizmente ainda existe a ideia de que o cancer é uma espécie de castigo divino, uma provação que deve ser amargada solitariamente.
É uma pena! As pessoas gostam de ajudar se souberem como e se puderem fazer isso de acordo com sua possibilidade. São tantas tarefas, divida com seus próximos. Fazer supermercado, ir ao banco, preparar uma refeição, varrer a casa. Peça o que precisa, pense sobre o que cada um pode oferecer de melhor, seja grato por haver tratamento, faça voce mesmo o melhor que puder.
Existem alegrias apesar do tratamento: estar entre queridos; ir no almoço de Dia das Mães e, mesmo recostada no sofá, participar das conversas e dar umas risadas em familia; crianças correndo pela casa.
Minha amiga da vida toda me levou pra passear e tomar um café; fizemos um inventario da vida - foram muitos banhos de cachoeira nas Paineiras.
O medico cuida dos remedios e da doença. Voce cuida de si e da saude. Faça sua escolha e se responsabilize por isso.

domingo, 24 de maio de 2009

Humanos, demasiado humanos.


Eu acabei ficando ocupada com o que escrevi no último post; sobre como as pessoas reagem, e interagem, quando ficam sabendo sobre alguém que está com cancer; sobre como o estigma da morte sentencia o portador. Não, eu não quero apontar o dedo pra ninguém quando escrevi sobre sair do próprio umbigo. Eu sei... somos humanos, demasiado humanos.
É que a gente vem construindo ao longo dos séculos um tipo de sociedade que fragiliza e desqualifica o sujeito, que está desconectado de si mesmo, suspenso por um fio que ele não sabe de onde vem. O Joel Birman (psicanalista, prof da UERJ) fala da 'cultura do espetáculo', onde precisamos sempre estar bonitos, alegres, produzindo e consumindo. Ninguém quer baixo astral; "- de problema, já chegam os meus", dizem por aí. Desconectado de si mesmo, desconectado do outro.
O estigma que o cancer carrega evoca a finitude do portador, mas, e aí está a questão, também a inexorável finitude de todos nós. Ninguém sabe como começa o cancer, o que faz com que qualquer um seja passível de ser acometido... duro, né? é muito melhor ficar à distância pra não ter que pensar nisso.
Desde o diagnostico eu decidi que não ia me esconder; nunca usei peruca ou fiz segredo. Em algumas situações omiti a noticia pra não ter que lidar com expressões (verbais e não verbais) de comiseração. Como eu já disse antes, já é muito ruim estar com a saúde abalada. Não foram poucas as vezes que eu 'dei força' pra alguém, afirmando que eu ia ficar boa, para consolar.
Então, meu depoimento é: se alguém próximo de vc estiver se tratando de um cancer, e se vc 'aguenta' se aproximar, não fale muito; procure a compaixão que está dentro de vc e abrace (cancer não é contagioso); ouça o que ele tem a dizer; não conte casos conhecidos, mesmo aqueles que deram certo - vai lembrar dos que não deram certo; reafirme seu apoio com atitudes; apareça para alguns minutos de compainha - o cansaço não permite longas conversas; leve uma qualquer coisa que a pessoa ache gostosa etc etc etc. O tratamento é longo, portanto, se vc realmente quer participar, prepare-se. Doses homeopáticas de carinho contribuem mais do que aparecer no domingo, ficar hoooras, e não voltar mais .
Apenas esteja junto... o resto o tratamento faz.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Só o amor constrói...


O enfrentamento do cancer é uma tarefa bem árdua e que não se limita ao tratamento prescrito, seja ele qual for. A partir do diagnóstico, o paciente, antes mesmo de iniciar o tratamento, já é obrigado a lidar com o estigma que estabelece que o mal é quase um sinônimo de morte. Mesmo eu, que me recusei a entrar nessa ideia, precisei lidar com o que as outras pessoas pensavam a respeito. E já conversei com outras pessoas conhecidas, inclusive pacientes meus, que tem a mesma vivencia. Esse recado chega das maneiras mais sutis. Tem gente que simplesmente some; tem gente que telefona pra alguém próximo de vc e diz que não vai visitá-lo porque não 'aguenta'; tem gente que vai pro outro extremo e se 'sacrifica' pelo paciente.
Por favor! será que dá pra sair do próprio umbigo e tentar perceber o outro e do que ele precisa?
O principal e comum efeito da quimioterapia é o extremo cansaço e a sensação de desfalecimento eminente, só que nos mantemos despertos, por que o tal cansaço (chamado astenia) não gera sono. Despertos mas incapazes de fazer qualquer coisa que dependa de atenção, como ler um livro ou assistir televisão; no máximo ouvir música. Essa sensação de desfalecimento tem efeito psicológico desgastante e desmotivador. Talvez seja por isso que alguns pacientes simplesmente desistem...
Adoecer, da forma como o cancer faz, remete o sujeito à fase em que era bebê, dependente e vulnerável. Se não há apoio e segurança, o sentimento é de desproteção e desesperança. Eu, por exemplo, sentia necessidade CORPORAL de ser colocada no colo, pra ser aninhada, protegida, cuidada.
Sou privilegiada por ter recebido isso, nos braços do meu marido, todas as noites, até hoje.